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DAS COISAS QUE CARREGAMOS PELA VIDA, DAS QUE ABANDONAMOS E DAS QUE PRECISAMOS APRENDER...

Sandra Rita Molina



Tive a sorte de ter pais maravilhosos, daqueles que aprenderam na raça, sem qualquer direcionamento pedagógico, o que era ser pai e mãe da década de 1960 do século XX. Com eles, recebi uma formação moral que construiu quem sou hoje. Aprendizado ético do tipo: seja honesta, solidarize-se com quem precisa, ajude a fazer do mundo um lugar melhor, fale a verdade mesmo que doa, assuma seus erros e enfrente as consequências de suas escolhas.

E quando, durante a infância e a adolescência, trazia para casa uma nota ruim, e tentava argumentar que a falha não era apenas minha, mas, pelo contrário, que toda a minha sala havia ido mal também, eu, invariavelmente escutava: “A turma de sua sala não é minha filha!”. Essa frase vinha do mesmo pacote de quem viveu os tempos terríveis da ditadura que havia reafirmado que “Religião, Política e Futebol, não se discute” e “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

E, ao longo da minha vida, estudando História, que a propósito é uma profissão fundamental em tempos obscuros como os que vivemos, ficava confusa! Buscava encaixar os valores aprendidos em casa, com o conhecimento adquirido, uma vez que a função dele, conhecimento, é a produção da subversão e um novo olhar para além da caverna em que nossa sociedade foi criada!

T.H. Marshall afirma que a experiência inglesa teve o acesso aos direitos civis, depois aos sociais e aos políticos gerando ao longo dos séculos uma sociedade ciente e ciosa de sua cidadania. Contudo, ao tentar entender a nossa história, comecei a refletir que, diferente dos ingleses, no Brasil a cidadania e a desigualdade a qual está relegada grande parcela da sociedade brasileira, houve uma inversão da evolução dos direitos.

Nossa Terra Brasilis é fruto de uma sociedade formada dentro das porteiras das fazendas, associada a séculos de escravidão que minguaram os pruridos morais, permitindo que se aceitasse a posse completa de outro ser, em função da manutenção de uma economia pujante. Como fruto desse processo tivemos, segundo José Murilo de Carvalho, uma cidadania doada, permitida dentro de limites estreitos do Estado e da elite e da classe média que sempre falam muito sobre direitos, mas que, segundo Milton Santos, adoram um privilégio!

Então, acreditei sempre que a saída para que pudéssemos aprender a ter acesso ao grupo clássico de direitos (civil, social e político) o caminho era a educação. É ela que nos traz a compreensão das instâncias do poder, que entendemos como macropolítica. Entretanto, ela não é suficiente, se não ampliarmos nossa percepção das demandas cotidianas que a sociedade possuí em seus vários nichos, construindo o que chamo de micropolítica.

Contudo, a conta dessa fórmula para o exercício de nossa cidadania nunca fecha. Acho que nos últimos meses comecei a entender uma possível variável para isso. Enquanto escrevo, vivemos o quinto mês de um ano surreal que se iniciou com a ameaça de guerra entre grandes potências e se estende com aeroportos e fronteiras fechadas, economias destruídas, isolamento social. Observamos a humanidade de joelhos ante um inimigo invisível.

Do ponto de vista da macropolítica, o que se vê é uma aterradora imaturidade daqueles que deveriam nos liderar. As instituições fraquejando perante uma parcela (felizmente mínima) da sociedade que, levada por um messianismo idólatra e aterrorizada pela ameaça em sua zona de conforto, vocifera ódio, intolerância e um saudosismo, incompreensível, de uma ditadura que nunca foi boa para ninguém, mas que em tempos de medo, a memória reelabora.

Ante a esse contexto imaginado até então pela ficção científica, tenho visto atos de amor e solidariedade. Profissões antes invisíveis sendo valorizadas. Atos de generosidade entre vizinhos de apartamento que nem se cumprimentavam. A preocupação com a fome de quem não conhecemos. Pessoas entendendo que ficar em casa é um ato de civilidade e respeito. E finalmente o aprendizado de que qualquer pequeno ato de afeto conta para melhorar a vida de quem está perto e nem sempre reparamos.

Por conta de um vírus invisível a olho nu, talvez em muitos séculos deixemos, enquanto nação, de olhar e passemos a ver. Não foi a pandemia que trouxe a falência do sistema de saúde e a inconsistência dos planos suplementares. Tampouco foi quem trouxe a falta de esgoto e saneamento básico, o desrespeito à dignidade humana nas periferias e comunidades das nossas cidades. Também não foi o vírus que mostrou a besta-fera, que parte dos brasileiros insiste em alimentar com o ódio e a cisão, em um momento em que deveríamos celebrar a união ante a tragédia de milhares de mortos.

Tudo isso já existia. Isso somos nós! Alguém já disse que o oposto do amor não é o ódio e sim o desprezo. Em nosso caso significa o descompromisso, o não se importar com nada que está para além dos muros de nossos lares.

E é aqui que retorno aos meus pais. Minha gratidão aos valores eternos que um indivíduo deve carregar consigo e que o transforma em humana criatura!

Essa é a hora de deixarmos ir o individualismo que o medo fomenta, a omissão que o receio constrói, o descaso que se justifica com o famoso: já pago impostos, alguém que resolva.... Nesses tempos de pandemia houve um aumento expressivo de violência doméstica que todos devemos denunciar! Em briga de marido e mulher, a polícia deve ser acionada sim! Religião que destrói terreiros não é fé, é ódio sim! Político de estimação destrói um país e a política deve ser discutida, sim!

Talvez tais posicionamentos tenham servido para nos trazer até o século XXI. Certamente, eles não são mais possíveis para o mundo a se construir após o fim de toda essa loucura.

Ao analisar o conteúdo aprendido na escola, a macro e a micropolítica e a dificuldade em nosso olhar cidadão, finalmente compreendi que a variável que faltava era a alteridade, empatia ou, se quiserem, compaixão.

O que mudou nesses últimos tempos é que nossa dor individual baixou as guardas secularmente construídas, nos permitindo sentir a dor do outro. E na dor, nos encontramos e nos sentimos mais humildes.

Muitos dirão: que ingenuidade! Quando tudo passar, voltaremos ao individualismo costumeiro. Outros continuarão a alimentar o ódio e a cisão que aquecem sua visão tosca e ignorante do mundo.

Ah... mas para aqueles que realmente entenderam o quanto podemos aprender enquanto indivíduos políticos, e para aqueles que compreenderam que política é pão na mesa, trabalho honesto com remuneração decente, dignidade humana e empoderamento das minorias.... para estes, a dor de mais de 15 mil mortes não terá sido em vão. E quem sabe, com este despertar para a vida, poderemos enfim construir não um país igualitário, o que seria ingenuidade, mas um país com equidade. Esse sim seria o nosso grande aprendizado para se levar pela vida, e ensinar nossos filhos! [1]


[1] CARVALHO, José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 15ª. Ed. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2012.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Zahar, 1967.

SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2001


*Deseja saber mais sobre o IPCCIC e os Seis Passos para a Cidade Humana? Acesse o nosso site: https://www.ipccic.com/. Conheça o livro "Os Seis Passos para a Cidade Humana" lançado pelo grupo em 2019: https://www.estacaoletras.com.br/product-page/os-seis-passos-para-uma-cidade-humana.



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